Introdução
Desde março de 2022, El Salvador vive sob um regime de exceção implementado pelo presidente Nayib Bukele, com o discurso oficial de erradicar a violência gerada pelas gangues (maras), particularmente a Mara Salvatrucha (MS-13) e a Barrio 18. O governo alega que essa política tinha caráter emergencial para restaurar a ordem pública. De fato, há sinais de sucesso: a taxa de homicídios despencou, segundo dados oficiais, e muitos cidadãos elogiam a sensação de segurança.
No entanto, essa “guerra contra as gangues” também tem gerado graves preocupações internacionais e domésticas sobre direitos humanos, o estado de direito e o tipo de modelo de governança que El Salvador está adotando. A análise a seguir busca equilibrar as duas faces desse regime: seus benefícios práticos e seus riscos estruturais.
Contexto e Justificativa
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Origem da medidaA decisão de decretar estado de exceção, suspendendo várias garantias constitucionais, veio após um fim de semana extremamente violento: entre 25 e 27 de março de 2022, 87 pessoas foram mortas em episódios atribuídos a gangues.
Esse momento de crise permitiu que Bukele justificasse a suspensão temporária de direitos, alegando necessidade urgente para conter a escalada de violência.
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Poderes especiais conferidosSob o regime, a polícia e os militares receberam autorização para prender sem mandato judicial, houve restrições a liberdades civis e fortalecimento do aparato de segurança.
Além disso, reformas legislativas foram feitas para permitir a detenção de forma mais ampla, o que permitiu um aumento massivo de prisões preventivas e reduziu proteções legais tradicionais.
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Dimensão do impactoAté agora, segundo dados oficiais e de organizações, dezenas de milhares de pessoas foram detidas. Por exemplo, o governo afirmou mais de 89 mil prisões sob esse regime.
Por outro lado, também há relatos massivos de abuso: prisões arbitrárias, detenções baseadas em perfis (como tatuagens), falta de acesso a defesa, julgamentos coletivos ou virtuais, tortura, mortes em custódia.
Conquistas Alegadas: Segurança e Popularidade
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Queda na criminalidadeO governo atribui ao regime de exceção uma redução drástica nos homicídios. Segundo autoridades, os números de violência caíram significativamente após a decretação do estado de emergência.
Esse argumento de segurança tem forte apelo popular, especialmente entre cidadãos que viveram sob a constante ameaça das gangues por décadas.
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Desmonte do “estado paralelo”O ministro da Segurança de Bukele afirmou que o “estado paralelo” controlado pelas gangues — um sistema de extorsão, controle territorial e arrecadação criminosa — teria sido “destruído”.
Segundo o governo, essa ofensiva reduziu significativamente os recursos das gangues (extorsão, aluguel ilegal, etc.).
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Suporte institucionalO regime de exceção tem sido renovado repetidamente pelo Legislativo, que é majoritariamente pró-Bukele, indicando que a estratégia é mantida como política de Estado, não apenas uma medida temporária.
Essa constância institucional reforça a narrativa de “guerra total” contra as gangues, consolidando a imagem de um Estado forte.
Críticas e Riscos Fundamentais
Apesar dos ganhos em segurança, há críticas estruturais e sérios riscos éticos, jurídicos e sociais:
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Violações de direitos humanos
- A Amnesty International denunciou detenções arbitrárias em massa, tortura, mortes em custódia e ausência de processos legais adequados.
- Há relatos de desaparecimentos forçados e tratamento cruel nos centros de detenção, com superlotação, falta de água, comida, atendimento médico, comunicação familiar, entre outros.
- Além disso, os julgamentos têm sido problemáticos: há instâncias em que até 500 pessoas são julgadas simultaneamente, com pouca ou nenhuma evidência individual.
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Impacto sobre crianças e adolescentes
- A Human Rights Watch (HRW) denunciou que quase 3.000 menores estão presos sob o regime de exceção, muitos por acusações amplas (“grupos ilícitos”), baseadas em denúncias não corroboradas e sem defesa adequada.
- Há relatos de maus-tratos, tortura psicológica e física, e condenações severas para jovens vulneráveis, ampliando o trauma social.
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Deterioração do Estado de Direito e do devido processo
- A institucionalização do regime de exceção (renovações mensais no Legislativo) indica que a medida, originalmente pensada para ser temporária, pode se tornar uma política permanente.
- A separação de poderes parece enfraquecida: há acusações de conluio entre Executivo, Legislativo e Judiciário para manter o regime e evitar responsabilização pelos abusos.
- Críticos apontam que essa normalização de medidas excepcionais abre precedentes perigosos para a democracia: concentrar poder no Executivo, minar garantias constitucionais, restringir liberdades civis.
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Criminalização da pobreza
- Observa-se que muitas das prisões são voltadas a pessoas de comunidades pobres, marginalizadas, onde o estigma das gangues é forte.
- O regime de exceção pode estar transformando a pobreza em crime, prendendo pessoas por perfil socioeconômico ou aparência (como tatuagens), sem provas reais de envolvimento em atividades ilícitas.
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Risco de autoritarismo e uso político
- Há vozes (como de organizações de direitos humanos) que afirmam que o estado de exceção está sendo usado não apenas para combater gangues, mas para silenciar vozes dissidentes, controlar a oposição e expandir o poder do presidente.
- Segundo críticos, o regime transforma a insegurança em ferramenta política para dar justificativa a ações autoritárias e acumular poder.
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Custos humanos ocultos
- Há relatos de centenas de mortes em prisões: por condições degradantes, falta de atendimento médico, tortura.
- Mesmo entre os presos que foram libertados, existem muitas famílias que afirmam inocência e dizem que a prisão ocorreu sem evidência adequada.
Dilemas Éticos: Segurança vs Liberdade
Esse regime levanta um dilema clássico: até que ponto a segurança justifica a suspensão de liberdades fundamentais?
- Argumento utilitarista: Se o regime de exceção efetivamente reduz homicídios e controla gangues, pode-se argumentar que a sociedade ganha — menos mortes, menos extorsão, mais sensação de ordem.
- Argumento de direitos: No entanto, esse tipo de política pode corroer os princípios do Estado de direito, da separação de poderes e dos direitos humanos. Se se legitima a arbitrariedade, abre-se espaço para abusos permanentes.
- Ciclo perigoso: Há o risco de normalizar medidas excecionais, fazendo com que “emergência” deixe de ser algo temporário e se torne um mecanismo de governo permanente, especialmente se houver respaldo político para mantê-lo.
Perspectivas para o Futuro
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Pressão internacionalOrganizações como a Amnesty International e a HRW já alertaram para a gravidade das violações. A comunidade internacional pode pressionar El Salvador a garantir medidas de responsabilização, transparência e reverter partes mais autoritárias do regime.
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Reformas legaisÉ essencial buscar um equilíbrio: manter políticas eficazes de combate às gangues, mas restaurar gradualmente os direitos suspensos, reintegrar garantias processuais, reforçar o sistema judiciário para tratar os casos individualmente e não em massa.
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Proteção de vulneráveisParticular atenção deve ser dada a crianças, adolescentes e comunidades marginalizadas. Programas sociais de prevenção ao recrutamento por gangues, educação, oportunidade econômica podem complementar a repressão policial, oferecendo uma abordagem mais sustentável.
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Monitoramento e responsabilizaçãoDeve haver mecanismos independentes para investigar abusos em prisões, mortes em custódia, desaparecimentos. A transparência nas prisões, o acesso de familiares e de entidades de direitos humanos são cruciais.
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Deslegitimar o autoritarismoA sociedade civil, a mídia independente e a academia podem desempenhar papel fundamental em denunciar excessos, acompanhar as consequências do regime e propor limites legais para que medidas excepcionais não se transformem em normalidade institucional.
Conclusão
O regime de exceção em El Salvador sob Bukele representa uma aposta arriscada: é uma “guerra total” contra as gangues com ganhos palpáveis em segurança, mas também com um enorme custo humano, institucional e ético. Embora muitos salvadorenhos celebrem a queda da violência, as denúncias de abusos sistemáticos, prisões arbitrárias e erosão das liberdades civis não podem ser ignoradas.
A grande questão crítica é se um Estado que suspende garantias constitucionais para garantir segurança não termina por minar, paradoxalmente, a própria base democrática que dá legitimidade a seu poder. Se esse modelo perdurar, El Salvador pode se tornar um caso emblemático do populismo autoritário “justificado pela segurança”: seguro, talvez, mas a que preço?
