A escolha do comunismo na Coreia do Norte e a (im)possibilidade da liberdade religiosa: uma investigação histórica e analítica sobre a perseguição a cristãos após 1945


Resumo

A adoção do comunismo na Coreia do Norte foi um processo marcado por condicionantes históricos e geopolíticos resultantes do fim da Segunda Guerra Mundial e da intensificação da Guerra Fria. Este artigo tem como objetivo examinar as razões que levaram à consolidação do regime comunista norte-coreano e, em seguida, investigar a perseguição a cristãos ocorrida após a institucionalização desse regime. Por meio de análise documental de relatórios da ONU, do Departamento de Estado dos EUA, da USCIRF e da organização Open Doors, além de literatura acadêmica, buscou-se compreender como a ideologia Juche e o culto à liderança contribuíram para o controle das práticas religiosas. Os achados sugerem que a perseguição não é episódica, mas sim estrutural e organizada pelo Estado, configurando uma violação sistemática dos direitos humanos.


1. Introdução

A Coreia do Norte é, ainda hoje, um dos países mais fechados do mundo. Desde sua fundação em 1948, construiu uma identidade política e social distinta, marcada por isolamento, militarização e culto à liderança. Esse processo não se deu de maneira espontânea: foi fruto da geopolítica do pós-guerra, que dividiu a península coreana em dois blocos ideologicamente rivais. Assim, compreender a adoção do comunismo no norte da Coreia exige revisitar tanto os interesses soviéticos e americanos no período como as dinâmicas internas que favoreceram a ascensão de Kim Il-sung.

Nesse sentido, o presente artigo parte da seguinte questão: por que a Coreia do Norte adotou o comunismo e de que forma esse sistema influenciou a relação do Estado com a liberdade religiosa, especialmente a cristã? Para responder, o trabalho divide-se em duas etapas: (i) uma análise histórica do processo de adoção do comunismo e (ii) uma investigação da perseguição religiosa.

Além de abordar um tema relevante da geopolítica e da história contemporânea, este estudo também dialoga com os debates atuais sobre liberdade de crença e direitos humanos. Em um mundo em que a religião se articula com política, identidade e relações internacionais, a experiência norte-coreana apresenta uma realidade extrema, em que o Estado não apenas controla, mas redefine os limites da vida religiosa.


2. Metodologia

O método empregado foi a análise documental e revisão bibliográfica. Utilizaram-se fontes históricas de caráter enciclopédico para contextualizar a divisão da península coreana, bem como relatórios produzidos por organismos internacionais (ONU, Departamento de Estado dos EUA, USCIRF e Open Doors).

Os documentos selecionados foram avaliados de acordo com três critérios principais: (i) confiabilidade institucional, (ii) abrangência temporal e (iii) possibilidade de triangulação. Isso significa que, sempre que possível, buscou-se confirmar a informação em diferentes relatórios ou bases de dados, de modo a mitigar vieses de fontes governamentais ou confessionais.

Cabe ressaltar que há limitações metodológicas inerentes ao tema. O acesso restrito à Coreia do Norte impede investigações de campo. Assim, a maioria das informações disponíveis decorre de depoimentos de desertores, imagens de satélite e análises de organizações externas, o que reforça a necessidade de leitura crítica.


3. Contexto histórico: por que a Coreia do Norte “escolheu” o comunismo?

3.1. Ocupação e engenharia estatal (1945–1948)

Com a derrota japonesa em 1945, a península coreana foi dividida no paralelo 38: ao norte, a presença soviética; ao sul, a estadunidense. Essa divisão não foi fruto de decisão popular, mas sim de arranjo estratégico das potências vencedoras da guerra. A influência soviética resultou em uma rápida reorganização do espaço político no norte, com a instalação de conselhos populares sob supervisão militar.

Nesse contexto, Kim Il-sung emergiu como liderança central. Ex-guerrilheiro que havia lutado contra os japoneses na Manchúria, Kim foi alçado ao poder com apoio direto de Moscou. O novo governo implementou uma reforma agrária radical, nacionalizou empresas e criou as bases para um regime socialista de partido único.

Assim, a adoção do comunismo não foi produto de escolha democrática da sociedade norte-coreana, mas resultado de uma engenharia política conduzida pela União Soviética, em consonância com a lógica da Guerra Fria que já se desenhava.


3.2. Consolidação partidária e Guerra Fria

Nos anos seguintes, a formação do Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC) consolidou o poder de Kim Il-sung. O partido assumiu não apenas a função de coordenação política, mas também de controle social e mobilização ideológica. A narrativa de resistência contra o imperialismo japonês e de construção de uma pátria soberana fortaleceu a legitimidade do novo regime.

A Guerra da Coreia (1950–1953) foi decisiva para cristalizar o antagonismo ideológico. O Norte tentou reunificar a península pela força, com apoio da URSS e da China, mas o conflito terminou em armistício, mantendo a divisão. A guerra, entretanto, reforçou a identidade do regime como bastião contra o imperialismo, legitimando a militarização da sociedade e a repressão a opositores internos.

A consolidação do comunismo, portanto, não se explica apenas pela influência externa, mas também pela habilidade do regime em articular nacionalismo, luta anticolonial e socialismo em um mesmo projeto político.


3.3. Do marxismo-leninismo ao Juche

Nos anos 1960 e 1970, Kim Il-sung desenvolveu a ideologia Juche, que defendia autossuficiência econômica, independência política e valorização da figura do líder. Embora inspirado no marxismo-leninismo, o Juche adaptou o socialismo às condições coreanas, enfatizando a centralidade da nação e a lealdade pessoal ao governante.

Essa ideologia serviu não apenas como discurso, mas como prática de governo. O Estado reorganizou instituições, reescreveu a história e mobilizou a educação para legitimar a supremacia do líder e do partido. Nesse processo, qualquer ideologia concorrente, incluindo religiões, foi interpretada como ameaça à unidade nacional.

Portanto, a adoção do comunismo na Coreia do Norte deve ser entendida como um processo de hibridização entre marxismo-leninismo e nacionalismo, resultando em um modelo próprio de socialismo que legitima a repressão religiosa em nome da coesão estatal.


4. Marco jurídico-ideológico sobre religião

A Constituição norte-coreana reconhece formalmente a liberdade de crença, mas impõe condicionantes que esvaziam esse direito. A prática religiosa só é permitida se não for usada para “introduzir forças estrangeiras” ou “prejudicar o Estado e a ordem social”. Na prática, tais cláusulas funcionam como instrumentos para criminalizar qualquer expressão de fé que escape ao controle do partido.

Assim, a religião é tolerada apenas quando se apresenta como subordinada ao regime. Igrejas oficiais em Pyongyang são frequentemente apontadas como “fachadas” destinadas a impressionar visitantes estrangeiros, mas não refletem uma prática autêntica ou livre.

Esse enquadramento jurídico reflete a visão do regime de que a religião, especialmente a cristã, representa risco de infiltração cultural e política, associada a inimigos externos como os Estados Unidos e a Coreia do Sul.


5. Evidências de perseguição a cristãos

5.1. Constatações da ONU (COI, 2014)

O relatório da Comissão de Inquérito da ONU sobre a Coreia do Norte (2014) descreve a ausência de liberdade religiosa efetiva. Testemunhos de desertores relatam prisões arbitrárias, torturas e até execuções sumárias de indivíduos acusados de praticar ou divulgar o cristianismo.

Além disso, a ONU documenta a existência de campos de prisioneiros políticos (kwanliso), onde muitas vítimas são enviadas por motivos religiosos. Nessas instalações, as condições de vida são desumanas, com relatos de trabalho forçado, fome e violência sistemática.

A conclusão da ONU é clara: a perseguição religiosa não é exceção, mas parte de uma política de Estado, articulada com a ideologia e a manutenção do poder centralizado.


5.2. Departamento de Estado dos EUA

Os relatórios anuais do Departamento de Estado dos Estados Unidos sobre liberdade religiosa reforçam esse diagnóstico. Eles descrevem como qualquer atividade religiosa não autorizada é considerada crime contra o Estado, resultando em detenções e desaparecimentos.

As igrejas autorizadas em Pyongyang são classificadas por observadores como “vitrines”, criadas para demonstrar tolerância ao exterior, mas sem correspondência real no cotidiano da população. Desertores relatam que a simples posse de uma Bíblia pode levar a punições severas.

Tais relatórios mostram que o cristianismo é visto pelo regime como uma ameaça política e cultural, associada ao “imperialismo americano” e à influência sul-coreana.


5.3. USCIRF e Open Doors

A Comissão dos EUA sobre Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF) classifica a Coreia do Norte consistentemente como “país de preocupação particular” (CPC), destacando a repressão sistemática a comunidades cristãs. Além disso, descreve práticas como a punição coletiva, em que famílias inteiras sofrem represálias pela fé de um indivíduo.

A organização Open Doors, em sua lista anual World Watch List, coloca a Coreia do Norte entre os países mais hostis ao cristianismo. Seus relatórios descrevem risco extremo para fiéis, que podem ser executados ou enviados a campos de trabalho forçado.

Apesar de a Open Doors ter um viés confessional, suas conclusões convergem com as de órgãos seculares, o que reforça a credibilidade das denúncias.


6. Mecanismos de repressão: por que cristãos são alvos?

A perseguição a cristãos pode ser explicada por três fatores principais. O primeiro é a lógica de segurança do regime: religiões conectadas a redes transnacionais são vistas como potenciais canais de infiltração estrangeira.

O segundo é o monolitismo ideológico: a fidelidade exclusiva ao líder não admite concorrência de lealdades espirituais, o que faz da religião uma ameaça à unidade do Estado.

Por fim, o regime adota a prática de punição coletiva, estendendo penalidades a familiares de fiéis, o que aumenta o controle social e o efeito dissuasório.


7. Discussão

A análise das fontes disponíveis sugere que a perseguição religiosa na Coreia do Norte é sistemática e organizada pelo Estado. Diferentes relatórios, de origens variadas, convergem na descrição de repressão extrema a cristãos, o que fortalece a confiabilidade das informações.

Ainda que haja limitações metodológicas — como o acesso restrito e a dependência de testemunhos de desertores —, a consistência temporal e a multiplicidade de fontes indicam que os relatos não são casos isolados, mas parte de uma política estruturada.

Nesse sentido, o cristianismo funciona como uma espécie de marcador da política repressiva do regime, revelando a incompatibilidade entre a ideologia Juche e a liberdade religiosa.


8. Conclusões

A Coreia do Norte não escolheu o comunismo por vontade popular, mas por imposição geopolítica, com apoio soviético e liderança de Kim Il-sung. Ao longo das décadas, esse modelo foi reinterpretado pelo Juche, consolidando um sistema político centralizado e autoritário.

No campo religioso, esse arranjo ideológico produziu uma política de repressão extrema, em que o cristianismo é perseguido de forma sistemática. As evidências apresentadas por organismos internacionais sustentam a conclusão de que tais práticas configuram violações graves de direitos humanos.

Portanto, a história da Coreia do Norte revela não apenas a adoção de um sistema político específico, mas também as consequências sociais e humanitárias dessa escolha, em particular para comunidades religiosas.


Referências 

BRITANNICA. History of Korea. Encyclopaedia Britannica, 2023. Disponível em: https://www.britannica.com.

UNITED NATIONS. Report of the Commission of Inquiry on Human Rights in the Democratic People’s Republic of Korea. Genebra: UNHRC, 2014.

UNITED STATES. Department of State. International Religious Freedom Report 2022: North Korea. Washington: US Government Printing Office, 2023.

USCIRF – United States Commission on International Religious Freedom. Annual Report 2023. Washington, D.C., 2023.

OPEN DOORS. World Watch List 2025 – North Korea. Open Doors International, 2025.

NKDB – Database Center for North Korean Human Rights. White Paper on Human Rights in North Korea 2024. Seul: NKDB, 2024.



Eduardo Fernando

Prof. Eduardo Fernando é Mestre em Educação pela Must University, especialista em Metodologias de Ensino Superior e Educação a Distância. Possui formação em Geografia pela Universidade Norte Do Paraná e Pedagogia pela Universidade Católica de Brasília.

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