A partir do século XX, com o avanço da urbanização nos países periféricos, surgiu a necessidade de compreender como coexistem no espaço urbano formas modernas e formas tradicionais de produção, comércio e consumo, e como essas se interrelacionam. A teoria dos dois circuitos de Milton Santos propõe que a economia urbana desses países se organiza em dois subsistemas integrados mas desiguais: circuito superior (moderno) e circuito inferior (não moderno).
Essa dualidade permite compreender fenômenos como segregação espacial, informalidade, pobreza urbana, e a persistência de modos de vida que escapam à lógica plenamente capitalista ou tecnológica. Entretanto, passados quase cinco décadas, surgem questões de pesquisa relevantes: como os circuitos interagem atualmente em função da globalização, das políticas urbanas, da digitalização econômica e das transformações sociais? Existe uma reconfiguração do circuito inferior em decorrência de novas tecnologias ou de mercados informais digitalizados? Como essas mudanças afetam a estrutura espacial das cidades subdesenvolvidas? O problema de pesquisa deste artigo é: De que maneira os dois circuitos da economia urbana segundo Milton Santos persistem e se reconfiguram no contexto contemporâneo, e quais são suas implicações espaciais e socioeconômicas nas cidades dos países subdesenvolvidos?
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Tipo de pesquisa: Teórico-interpretativa com suporte empírico indireto, pois não foram coletados dados primários específicos, mas sim analisados resultados de estudos de caso publicados que aplicam ou dialogam com a teoria dos dois circuitos.
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Critérios de amostragem: Seleção de obras de Milton Santos, especialmente O Espaço Dividido e textos correlatos, bem como artigos acadêmicos publicados nos últimos vinte anos que fazem uso explícito da noção de circuitos superiores e inferiores — em particular, estudos urbanos de países da América Latina, África ou Ásia. A escolha priorizou representatividade geográfica e diversidade de escalas urbanas (cidades médias e grandes).
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Instrumentos de coleta de dados: Revisão sistemática da literatura acadêmica em bases como Scielo, Google Scholar e periódicos de Geografia Urbana; leitura crítica das definições e das evidências empíricas que autores modernos apresentam; tabulação comparativa das características atribuídas a cada circuito nas diferentes fontes.
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Técnicas de análise: Análise de conteúdo para identificar categorias centrais ligadas a cada circuito (natureza da atividade econômica, tecnologia, escala, relações de mercado, trabalho); análise comparativa para examinar convergências e divergências entre a teoria original e os casos empíricos recentes; e discussão crítica sobre limitações metodológicas identificadas nos estudos revisados.
Contextualização geral dos resultados
Os resultados apontam que os circuitos superior e inferior continuam firmemente presentes nas cidades dos países subdesenvolvidos, porém com reconfigurações significativas. O circuito superior segue associado a atividades modernizadas, capital-intensivas, com forte inserção no mercado global e com tecnologia de ponta. O circuito inferior permanece dominado por pequenas unidades de produção, informalidade, serviços de base local, comércio tradicional, relações de trabalho menos protegidas. A relação entre ambos envolve dependência, interpenetração de práticas e também tensão quanto ao acesso a infraestrutura, à formalização e à regulação urbana.
A seguir, exploram-se achados específicos divididos em subtítulos que refletem dimensões particulares da teoria aplicada atualmente: (a) Natureza das atividades e tecnologia; (b) Trabalho e informalidade; (c) Espaço urbano e desigualdade espacial.
a) Natureza das atividades e tecnologia
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O circuito superior, conforme registros recentes, engloba indústrias modernas, empresas exportadoras, grandes serviços financeiros, comércio atacadista e de alta escala, além de setores de inovação tecnológica. Estudos em cidades latino-americanas confirmam que este circuito exige elevados níveis de investimento, infraestrutura de telecomunicações, acessos internacionais, entre outros, para operar de forma competitiva. Por exemplo, em diversos artigos revisados nos últimos dez anos, empresas de tecnologia ou fintechs que operam em centros urbanos costumam estar claramente inseridas no circuito superior, tanto em capital quanto em mercado e redes de consumo.
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Contrariamente, o circuito inferior segue predominando em atividades que requerem menor investimento de capital, com força de trabalho intensiva, como comércio de rua, empreendimentos familiares, produção artesanal e prestação de serviços básicos de proximidade. Essas atividades tendem a empregar tecnologias simples ou tradicionais, quando empregam alguma inovação, frequentemente esta é adaptativa ou de baixo custo — por exemplo, uso de aplicativos ou redes sociais para vendas informais, microempreendimentos locais que utilizam plataformas digitais, mas sem automatização de processos ou escala industrial em grande medida.
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Há casos recentes que mostram alguma convergência tecnológica: o uso de tecnologia digital no circuito inferior, especialmente para marketing, vendas, logística básica ou redes de consumo informais. Entretanto, essa convergência é limitada pela falta de capital constante, infraestrutura de qualidade, acesso a crédito formal e regulação adequada. A tecnologia muitas vezes é usada de modo híbrido em circuitos inferiores — algo que Santos já pressentia quando apontava que o circuito inferior não é algo estático ou “tradicional” puro, mas envolvido em transformações permanentes.
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Essa natureza distinta dos circuitos implica também uma disparidade quanto ao acesso a inovações, à formação de capacidades técnicas e ao capital intelectual. O circuito superior retém vantagens comparativas no atração de investimentos externos, mão de obra qualificada, centros de pesquisa e desenvolvimento; em contraste, o circuito inferior costuma depender de inserções periféricas ou marginais a essas cadeias, muitas vezes relegado a funções de suporte ou de atendimento local.
b) Trabalho e informalidade
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O circuito inferior apresenta concentrações elevadas de trabalho informal, com vínculo empregatício precário ou inexistente, jornadas mal reguladas, proteção social reduzida ou ausente. Este foi um dos pontos centrais da crítica de Milton Santos: a “economia popular” ou atividades menores não são meramente residuais, mas estruturais ao funcionamento urbano.
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Em muitos estudos contemporâneos, observa-se que o circuito inferior funciona como “escapatória” para populações excluídas do circuito superior: migrantes, população de baixa renda, pessoas com menor escolaridade. A informalidade é tanto uma resposta adaptativa quanto uma forma de sobrecarga das políticas públicas, que frequentemente falham em regulamentar ou integrar essas atividades de modo pleno.
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Por outro lado, há estudos que apontam melhorias ou formalizações pontuais: microempreendedores que se registram, comércio informal que se organiza em cooperativas ou associações, políticas públicas de fomento ao empreendedorismo informal. Entretanto, essas formalizações geralmente mantêm características típicas do circuito inferior — escala pequena, uso intensivo de trabalho, pouco capital tecnológico — e não eliminam a assimetria de poder, renda ou visibilidade em relação ao circuito superior.
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Além disso, em certas cidades, pressiona-se por políticas de inclusão social, regulação urbanística, infraestrutura básica (água, transporte, saneamento) que permite ao circuito inferior operar com menor vulnerabilidade. Nessas dimensões, surgem tensões sobre quem paga, quem regula, quem lucra: uma reforma urbana ou política de zoneamento pode favorecer ou penalizar atividades informais, dependendo dos interesses envolvidos.
c) Espaço urbano e desigualdade espacial
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A divisão entre circuitos repercute fortemente no espaço urbano: bairros centrais, zonas com infraestrutura robusta, acessos a bens culturais e serviços modernos, concentram as atividades do circuito superior. Zonas periféricas, favelas, áreas de expansão recente ou assentamentos informais tendem a abrigar preponderantemente atividades do circuito inferior, com menor infraestrutura, mais precariedade de serviços públicos, menor acessibilidade. Isso gera padrões de segregação espacial visível: desigualdades no acesso ao transporte, educação, saúde, lazer, cultura.
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Em algumas pesquisas, esse traçado espacial é reforçado por políticas públicas ou ausência delas: regulamentações que favorecem grandes empreendimentos, especulação imobiliária, zoneamento restritivo, precificação de terrenos, deslocamentos forçados (urbanização tardia das periferias) — tudo isso reforça a exclusão espacial do circuito inferior.
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Observa-se também que, em algumas cidades, as áreas ocupadas por circuitos inferiores estão sofrendo processos de gentrificação ou valorização imobiliária, o que provoca deslocamento das populações de menor renda ou transforma a função dessas áreas, sem necessariamente transferir para estas populações os benefícios do circuito superior. A infraestrutura, porém, algumas vezes se expande — transporte, telecomunicações, saneamento — mas nem sempre com equidade.
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Importa destacar limitações dos estudos revisados quanto à granularidade dos dados espaciais: muitos artigos usam agregações administrativas (bairros, zonas censitárias) que obscurecem variações intra-bairro; faltam estudos longitudinais que mostrem como as dinâmicas espaciais de transição entre circuitos operam ao longo do tempo; poucos trabalham com dados atualizados de tecnologia ou informalidade digital.
Limitações da pesquisa
- A maioria dos estudos existentes utiliza dados secundários e métodos de agregação espacial que podem mascarar variações internas significativas;
- Há escassez de estudos empíricos robustos que mesclem aspectos quantitativos e qualitativos a fim de acompanhar transformações recentes como o impacto de plataformas digitais ou economia de aplicativos no circuito inferior;
- A teoria original de Milton Santos, embora amplamente fundamentada, foi elaborada em contexto de décadas anteriores; sua aplicação documental às novas realidades exige adaptação conceitual e metodológica;
- Diversidade geográfica e cultural exige cautela: nem todas as cidades subdesenvolvidas têm a mesma estrutura institucional, política urbana ou grau de integração global, o que pode afetar a forma como os circuitos se manifestam.
As contribuições da pesquisa incluem a atualização conceitual da teoria dos circuitos, demonstrando que sua relevância continua, ao mesmo tempo em que evidencia lacunas empíricas que demandam investigação futura. Em particular, estudos futuros podem buscar:
- aplicação de métodos mistos para captar as dinâmicas internas aos circuitos com maior precisão;
- investigação longitudinal das transformações tecnológicas e digitais nos circuitos inferiores;
- estudo da influência das políticas urbanas recentes (zoneamento, regulação, inclusão) na articulação entre circuitos;
- comparativos internacionais entre cidades de contextos culturais e institucionais distintos para avaliar variações nas manifestações dos circuitos.
Referências
