A Ambiguidade da Morte do Trabalhador em “Construção”, de Chico Buarque



Resumo


O presente artigo analisa a canção “Construção” (1971), de Chico Buarque, destacando a ambiguidade em torno da morte do trabalhador descrito na letra. A análise aborda aspectos literários, musicais e contextuais, apontando possíveis leituras – acidente de trabalho ou suicídio – e relacionando-as com o contexto social e político do Brasil na década de 1970. A reflexão evidencia como a obra transcende a narrativa individual, tornando-se uma denúncia das condições precárias dos trabalhadores urbanos e uma crítica à alienação na sociedade moderna.


Palavras-chave: Chico Buarque; Construção; Trabalhador; Ambiguidade; Crítica social.


1. Introdução


A canção “Construção”, lançada em 1971 no álbum homônimo de Chico Buarque, é reconhecida como uma das obras mais sofisticadas da Música Popular Brasileira. Seu caráter inovador reside não apenas na melodia e arranjos, mas especialmente na letra, estruturada com recursos de repetição e variação que simbolizam a rotina alienante do operário da construção civil.

Entre os elementos que mais provocam debate, está a morte do trabalhador. A narrativa sugere que o personagem “caiu do andaime” e “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Entretanto, a letra não esclarece se o ocorrido foi um acidente de trabalho ou um suicídio. Essa ambiguidade é central para compreender a densidade poética e política da canção.


2. Contexto Histórico e Social da Canção


“Construção” surge em um momento em que o Brasil vivia sob a ditadura militar (1964–1985). O regime buscava censurar expressões artísticas críticas, enquanto o país passava por intenso processo de urbanização e crescimento econômico, sustentado por políticas de obras públicas e expansão da construção civil.

Nesse cenário, os trabalhadores da construção civil simbolizavam uma classe invisibilizada, responsável pelo desenvolvimento urbano, mas desprovida de direitos básicos e submetida a acidentes constantes. Assim, a letra da canção funciona como uma crônica dessa realidade, revelando tanto o cotidiano quanto a morte do operário como metáfora da desumanização do trabalho.


3. Estrutura Poética e Repetição


A canção é construída em estrofes que repetem as mesmas ações do personagem, modificando apenas a última palavra ou expressão (“como se fosse máquina / como se fosse lógico / como se fosse um príncipe…”).


Esse recurso gera dois efeitos:


Ritmo e mecanicidade, sugerindo o caráter repetitivo e alienante da rotina do operário.

Múltiplos sentidos, pois a mudança de palavras altera sutilmente a interpretação de cada verso, culminando na morte do personagem.

A morte, descrita como “caiu do andaime”, pode ser lida de maneiras diferentes conforme a progressão dos versos.


4. A Interpretação do Acidente de Trabalho


Uma leitura plausível é que a queda do trabalhador seja fruto de um acidente típico das condições precárias da construção civil.

O personagem é descrito como alguém que age “como se fosse máquina”, evidenciando exaustão e alienação, fatores de risco para acidentes.

O Brasil dos anos 1970 possuía altos índices de acidentes na construção civil, devido à ausência de equipamentos de proteção e normas rígidas de segurança.

A frase “morreu na contramão atrapalhando o tráfego” sugere uma morte banalizada, reduzida a um contratempo no fluxo urbano.

Essa leitura reforça o caráter de denúncia social: o trabalhador é uma peça substituível na engrenagem do progresso, e sua morte não provoca comoção.


5. A Interpretação do Suicídio


Por outro lado, há indícios de que a morte possa ser um ato voluntário de desespero:

As expressões “beijou sua mulher como se fosse a última” e “lavou o corpo como se fosse o último” soam como gestos de despedida.

A repetição das ações com variações reforça um sentimento de aprisionamento existencial, como se não houvesse saída para o personagem.

“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego” pode simbolizar um ato deliberado de romper com a lógica da sociedade, um gesto que vai “na contramão” do fluxo imposto.

Essa interpretação acentua a dimensão existencialista da canção, transformando o trabalhador em símbolo de um indivíduo que decide, de alguma forma, reagir à alienação.


6. A Força da Ambiguidade


Chico Buarque jamais esclareceu o significado exato da morte em “Construção”. Essa escolha estética confere à canção um caráter universal e atemporal, permitindo que cada ouvinte construa sua própria leitura.

A ambiguidade serve a um propósito político e poético:

Denunciar as condições de trabalho sem cair no panfleto.

Evocar a experiência de sofrimento individual como metáfora da coletividade.

Sugerir que tanto a morte acidental quanto a voluntária são, no fundo, frutos de um mesmo sistema que desumaniza e marginaliza.


7. Conclusão


“Construção” é muito mais do que a narrativa da morte de um trabalhador. É uma reflexão profunda sobre a alienação, a precariedade do trabalho urbano e a invisibilidade dos indivíduos que constroem as cidades.

A ambiguidade sobre a morte do personagem — acidente ou suicídio — não enfraquece, mas potencializa o impacto da canção, pois permite múltiplas interpretações que dialogam com diferentes contextos e sensibilidades.

Ao não definir claramente o destino do operário, Chico Buarque convida o ouvinte a refletir não apenas sobre um caso individual, mas sobre a estrutura social que torna vidas descartáveis.


Referências


BUARQUE, Chico. Construção. Rio de Janeiro: Philips Records, 1971.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.


Eduardo Fernando

Prof. Eduardo Fernando é Mestre em Educação pela Must University, especialista em Metodologias de Ensino Superior e Educação a Distância. Possui formação em Geografia pela Universidade Norte Do Paraná e Pedagogia pela Universidade Católica de Brasília.

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