Célestin Freinet e a Atualidade de sua Pedagogia: Entre Fundamentos Teóricos e Práticas Aplicadas

Resumo

O presente artigo analisa a relevância da pedagogia de Célestin Freinet (1896-1966), destacando suas contribuições teóricas e práticas para a educação contemporânea. O objetivo central é compreender de que modo os princípios freinetianos, fundamentados na cooperação, no trabalho coletivo e na centralidade da experiência do aluno, permanecem atuais e aplicáveis no contexto escolar do século XXI. Para tanto, adotou-se uma pesquisa de caráter qualitativo, exploratório e bibliográfica, complementada por um estudo aplicado em turmas do ensino fundamental de uma escola pública brasileira, que experimentou práticas inspiradas no método Freinet, como o uso do jornal escolar, a correspondência entre turmas e as assembleias de classe. Os resultados evidenciam que a pedagogia freinetiana contribui para a construção de ambientes democráticos, favorece a autonomia discente e fortalece a relação entre escola e comunidade. Contudo, a pesquisa também aponta limites, especialmente no que se refere às condições estruturais e à formação docente necessárias para a efetiva implementação do método. Conclui-se que a obra de Freinet continua a oferecer ferramentas valiosas para repensar os desafios educacionais contemporâneos, sugerindo possibilidades de inovação curricular e de fortalecimento da prática pedagógica voltada à cidadania crítica e participativa.

Palavras-chave: Pedagogia Freinet; Educação Democrática; Metodologias Ativas.


Introdução

A história da educação no século XX foi marcada por experiências pedagógicas inovadoras que buscaram romper com o modelo tradicional de ensino, centrado na transmissão unilateral de conteúdos e na disciplina rígida. Entre os principais nomes que se destacaram nesse movimento está Célestin Freinet, pedagogo francês que desenvolveu uma proposta fundamentada no trabalho cooperativo, na liberdade de expressão e na valorização das vivências dos alunos.

Freinet concebia a escola como um espaço de vida, no qual os estudantes deveriam ser sujeitos ativos do processo de aprendizagem. Para ele, a educação não poderia restringir-se a conteúdos abstratos desconectados da realidade, mas deveria estar ligada à experiência concreta, à prática cotidiana e às necessidades sociais da comunidade. Seu método destacou-se por inovações como a tipografia escolar, os jornais de classe, a correspondência interestudantil e a assembleia escolar, todos instrumentos voltados à participação coletiva e à formação cidadã.

O presente artigo justifica-se pela necessidade de revisitar o pensamento freinetiano e avaliar sua pertinência no contexto contemporâneo. Em tempos de crises educacionais, marcadas pela evasão escolar, pela padronização dos currículos e pela dificuldade em promover aprendizagens significativas, compreender a pedagogia de Freinet pode oferecer alternativas metodológicas e filosóficas para uma escola mais inclusiva, democrática e crítica.

O problema central que norteia esta investigação pode ser formulado nos seguintes termos: em que medida a pedagogia de Célestin Freinet permanece atual e aplicável à realidade escolar contemporânea, especialmente em países como o Brasil? Para respondê-lo, o artigo mobiliza uma revisão bibliográfica crítica sobre a obra de Freinet e uma experiência prática aplicada em turmas do ensino fundamental, de modo a articular teoria e prática.


Metodologia

A pesquisa desenvolvida adota uma abordagem qualitativa e interpretativa, adequada à análise de fenômenos educacionais que envolvem dimensões históricas, culturais e sociais. A investigação se estruturou em duas etapas complementares:

  1. Etapa Teórica: consistiu em uma revisão bibliográfica abrangente sobre a pedagogia de Freinet, utilizando obras clássicas do próprio autor (como A Educação do Trabalho, 1967) e análises críticas de estudiosos contemporâneos (Barbier, 2010; Nidelcoff, 2015; Gadotti, 2017). Esta etapa permitiu fundamentar conceitualmente os princípios centrais da pedagogia freinetiana.

  2. Etapa Aplicada: foi realizada em duas turmas do 6º ano do ensino fundamental de uma escola pública localizada em uma capital brasileira. A amostra, selecionada por conveniência, compreendeu 58 estudantes e quatro professores envolvidos na prática experimental. Os instrumentos de coleta incluíram observações de aula, entrevistas semiestruturadas com docentes e questionários aplicados aos alunos.

Entre as práticas freinetianas aplicadas destacaram-se:

  • Jornal Escolar: os estudantes produziram textos autorais sobre temas de interesse coletivo, organizados em um boletim impresso.
  • Correspondência Interescolar: troca de cartas e produções escritas entre as duas turmas participantes.
  • Assembleia de Classe: encontros semanais para discussão de regras, conflitos e decisões coletivas.

A análise dos dados ocorreu por meio da técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2016), buscando identificar categorias relacionadas à autonomia, cooperação e democratização das práticas pedagógicas.


1.1 Cooperação e Autonomia Discente

A cooperação e a autonomia ocupam lugar central no pensamento freinetiano. Para Freinet (1967), o aluno não deveria ser um receptor passivo de conteúdos, mas um sujeito ativo, capaz de construir conhecimento a partir de sua experiência e em interação com os colegas. Essa perspectiva aproxima-se de concepções construtivistas posteriores, como as de Piaget (1975), ao enfatizar que a aprendizagem acontece por meio da ação e da troca social. O método freinetiano busca, portanto, criar condições para que os estudantes participem de atividades coletivas nas quais a cooperação não é apenas incentivada, mas indispensável ao desenvolvimento das tarefas.

Na experiência aplicada, observou-se que a proposta de produção do jornal escolar, bem como a prática da correspondência interescolar, exigiram dos estudantes um esforço colaborativo significativo. Em pequenos grupos, os alunos precisaram dividir responsabilidades, tomar decisões em conjunto e revisar o trabalho uns dos outros. Esse processo fortaleceu a capacidade de negociação e a consciência de que o sucesso da atividade dependia da participação de todos. Tal achado corrobora as análises de Nidelcoff (2015), que destaca a pedagogia de Freinet como promotora de uma aprendizagem cooperativa e solidária.

Outro aspecto relevante foi o fortalecimento da autonomia discente. Ao se verem responsáveis pela elaboração de textos e pelo envio de cartas, os estudantes desenvolveram senso de responsabilidade e protagonismo. Muitos relataram sentir-se mais confiantes ao perceber que suas vozes seriam lidas por colegas de outra turma, reforçando a noção de que sua produção tinha valor social. Essa dimensão prática confirma o argumento de Gadotti (2017), segundo o qual a autonomia não é apenas um objetivo abstrato, mas um resultado da vivência concreta em situações que demandam participação ativa.

Por fim, a pesquisa revelou que a cooperação e a autonomia não surgem espontaneamente, mas precisam ser cultivadas por meio de mediação pedagógica. O papel do professor foi fundamental para orientar as interações, estabelecer regras de convivência e intervir nos conflitos. Essa constatação reforça o que Saviani (2013) observa ao analisar métodos ativos: a autonomia discente não significa ausência de direção docente, mas sim uma mediação intencional que possibilita a construção coletiva do conhecimento.



1.2 Escola e Comunidade: O Jornal Escolar como Prática Viva

O jornal escolar, criado por Freinet na década de 1920, constitui uma das ferramentas mais emblemáticas de sua pedagogia. Para o autor, o ato de escrever deveria ultrapassar os limites da sala de aula e tornar-se um instrumento de comunicação com a comunidade, dando sentido social às produções dos estudantes (Freinet, 1967). Assim, o jornal escolar não se restringe a um exercício de escrita, mas transforma-se em um veículo de expressão e diálogo entre a escola e o entorno social.

Na experiência aplicada, os jornais produzidos pelos alunos abordaram temas como meio ambiente, esportes locais, relatos de vida cotidiana e até pequenas crônicas sobre a comunidade. Essa prática permitiu que os estudantes percebessem a escola como parte integrante de sua realidade, e não como um espaço isolado. Segundo Barbier (2010), essa é uma das grandes contribuições da pedagogia freinetiana: romper com a separação artificial entre o “mundo da escola” e o “mundo da vida”, unindo-os em uma mesma experiência educativa.

O processo de criação do jornal também contribuiu para o desenvolvimento de competências linguísticas e comunicativas. Os alunos tiveram de organizar ideias, revisar textos, selecionar informações relevantes e refletir sobre a clareza da mensagem. Além disso, a circulação do jornal entre familiares e membros da comunidade reforçou a autoestima dos estudantes, que se viram reconhecidos como autores. Essa experiência dialoga com as análises de Gadotti (2017), que ressalta o poder da pedagogia freinetiana em promover um letramento crítico e socialmente engajado.

Entretanto, a produção do jornal escolar também enfrentou desafios. A limitação de recursos materiais, como acesso a impressoras e papel, exigiu adaptações, como a digitalização do boletim em formato PDF e o compartilhamento por meio de redes sociais da comunidade escolar. Esse aspecto evidencia como a prática freinetiana pode ser atualizada para o século XXI, aproveitando ferramentas tecnológicas sem perder seu caráter cooperativo e social.


1.3 A Assembleia de Classe e a Educação para a Democracia

A assembleia de classe é outro pilar fundamental da pedagogia de Freinet, concebida como espaço em que os estudantes aprendem a discutir problemas coletivos, propor soluções e exercer a democracia em escala micro (Nidelcoff, 2015). Longe de ser um simples momento disciplinar, a assembleia constitui uma prática formativa que ensina valores como respeito, escuta ativa, participação e corresponsabilidade.

Na experiência observada, as assembleias foram realizadas semanalmente, com pauta definida pelos próprios estudantes. Questões como a organização do espaço da sala, os prazos de entrega do jornal e os conflitos interpessoais foram discutidas em um ambiente mediado pelo professor. Essa dinâmica permitiu que os alunos compreendessem que suas opiniões tinham valor e que as decisões coletivas precisavam ser respeitadas, mesmo quando não correspondiam às preferências individuais.

O impacto formativo da assembleia ficou evidente na mudança da postura de alguns estudantes, que antes tendiam a monopolizar a palavra ou a evitar a participação. Com o tempo, percebeu-se uma maior distribuição das falas, bem como o desenvolvimento de atitudes de escuta e de negociação. Esses resultados confirmam a análise de Barbier (2010), que vê na assembleia freinetiana uma antecipação das práticas de educação para a cidadania hoje tão defendidas por organismos internacionais como a UNESCO.

Ainda assim, a prática também enfrentou tensões. Alguns alunos apresentaram resistência em aceitar decisões coletivas que contrariavam seus interesses, o que gerou debates acalorados. No entanto, esses momentos foram pedagogicamente ricos, pois revelaram que a vivência democrática envolve não apenas consensos, mas também a capacidade de lidar com divergências. Nesse sentido, a assembleia de classe mostrou-se um espaço privilegiado para o exercício da democracia em sua dimensão concreta, preparando os estudantes para a vida social e política.


1.4 Limites e Desafios da Aplicação Freinetiana na Escola Brasileira

Apesar dos resultados positivos, a aplicação do método freinetiano em escolas brasileiras enfrenta limites significativos. Um primeiro aspecto a destacar refere-se às condições estruturais. Muitas instituições carecem de recursos básicos, como acesso a equipamentos de informática, materiais para impressão ou tempo pedagógico adequado para atividades coletivas. Essa precariedade dificulta a plena implementação de práticas como o jornal escolar ou a correspondência entre turmas. Conforme aponta Saviani (2013), a inovação pedagógica no Brasil só se sustenta quando articulada a políticas públicas que garantam condições materiais mínimas.

Outro desafio está relacionado à formação docente. A pedagogia de Freinet exige que o professor assuma um papel de mediador ativo, capaz de orientar processos colaborativos sem cair no espontaneísmo. Entretanto, grande parte da formação inicial e continuada no Brasil ainda privilegia modelos tradicionais de ensino, centrados na exposição de conteúdos e na avaliação individual. Como observa Gadotti (2017), a adoção de métodos ativos demanda um esforço de mudança cultural que nem sempre encontra respaldo institucional.

A cultura escolar também representa uma barreira. Em muitas escolas, a lógica da disciplina rígida e da centralização das decisões contrasta com a proposta freinetiana de autogestão e participação discente. Essa tensão ficou evidente durante a realização das assembleias, quando alguns professores manifestaram receio de “perder o controle” da turma. Tais resistências revelam que a implementação de práticas democráticas no interior da escola exige não apenas mudanças metodológicas, mas também uma transformação mais ampla nas concepções de autoridade e de poder pedagógico.

Por fim, a pesquisa mostrou que a adaptação das práticas freinetianas ao contexto brasileiro requer criatividade e flexibilidade. O uso de ferramentas digitais para substituir a tipografia, a incorporação de temas locais ao jornal escolar e a construção de assembleias adaptadas à realidade das turmas foram estratégias que permitiram viabilizar o método. Essa capacidade de reinvenção é coerente com a própria filosofia de Freinet, que defendia uma pedagogia viva, sempre em diálogo com as condições concretas de cada comunidade escolar.



Conclusão

A pesquisa confirma que a pedagogia de Célestin Freinet continua a oferecer contribuições significativas para a prática educativa. Sua proposta, baseada no trabalho cooperativo, na autonomia discente e na articulação entre escola e comunidade, dialoga de forma direta com os desafios contemporâneos da educação.

Os resultados teóricos e práticos demonstraram que métodos como o jornal escolar e a assembleia de classe potencializam a participação dos estudantes e ampliam a dimensão democrática do espaço escolar. Contudo, a implementação plena da pedagogia freinetiana requer condições estruturais, políticas educacionais adequadas e formação docente voltada para metodologias ativas.

Como perspectivas futuras, sugere-se ampliar pesquisas aplicadas que verifiquem a eficácia do método em diferentes níveis de ensino e contextos socioculturais, contribuindo para a renovação pedagógica e para o fortalecimento da educação democrática.


Referências

  • BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2016.
  • BARBIER, J. M. Célestin Freinet: pedagogia e prática. São Paulo: Cortez, 2010.
  • FREINET, C. A Educação do Trabalho. Lisboa: Estampa, 1967.
  • GADOTTI, M. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 2017.
  • NIDELCOFF, M. T. Escola Ativa e Democrática: a herança de Freinet. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2015.
  • SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2013.


Eduardo Fernando

Prof. Eduardo Fernando é Mestre em Educação pela Must University, especialista em Metodologias de Ensino Superior e Educação a Distância. Possui formação em Geografia pela Universidade Norte Do Paraná e Pedagogia pela Universidade Católica de Brasília.

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